Desde que fiz 40 anos tenho pensado cada dia mais sobre quanto vale o tempo. Ultimamente ando cantarolando com certa frequência àquela música do Caetano, que fala Dele: “tempo, tempo, tempo, tempo…”. O tempo de estar com a família, com os amigos, de viver coisas simples – que são as boas coisas da vida, o trabalho, o tempo das revelações diárias – o amanhecer, o entardecer, o cair da noite, o silêncio das madrugadas, invariavelmente ocupados com uma simples leitura ou algum estudo, ao contrário de quando eram ocupadas com trabalho.
Aos 40 anos faz-se um balanço da vida e o meu começou aos 39, com um certo apavoramento, chegando à conclusão que provavelmente teria menos tempo de vida dali para a frente, do que o decorrido até então. Sem querer acabei parafraseando Mário de Andrade, pensando nas jabuticabas na bacia. Fiz a conta das coisas já vividas e noves fora umas e outras, concluí que fiz muito mais do que esperava, mas muito menos do que pretendia, ou deveria ter feito. E de certa forma isso causou um sentimento de vazio, misto de preocupação com um desconforto por ter tantas coisas imaginadas e poucas realizadas.
Assustou-me o fato de ter menos tempo de vida para tudo o que se gosta, como um caminhar pela praia no amanhecer ou entardecer, ouvindo as ondas quebrarem na arrebentação e se espalharem preguiçosas pela areia, para recolher-se pouco depois, mais mansamente, iniciando novamente um ciclo sem fim, interrompido somente de tempos em tempos com mar bravio, agitado por ventos mais nervosos, que é como se a natureza nos chamasse a pensar sobre tudo o que temos feito contra ela. Em compensação, há menos tempo para as coisas que não se gosta, lembrando novamente o Mário de Andrade.
Próximo aos 41 tornei-me pai pela terceira vez. Foi como se remoçasse alguns anos. Alguns bons anos, porque me trouxe de volta a relação com meu velho pai – que na época já havia morrido – a quem só passei a compreender realmente após ter me tornado pai de duas belas meninas, entretanto de maneira inversa: agora eu era o pai, e não o filho. Sobre isso, lamentei o fato de meu filho não ter convivência com o avô, pois ele foi um grande sujeito, ótimo amigo, um guia – de coisas boas e ruins, que com o tempo de vida foi se moldando, tornando-se mais afável, mais carinhoso, mais compreensivo, um pouco melancólico, entretanto menos tolerante com a ignorância de um mundo em mutação. Sorte ele – meu filho – ter podido alegrar o outro avô, na época com problemas de saúde.
Estranha essa coisa do tempo, que às vezes trás repetições da vida, mas de uma forma diferente, porque a cada segundo, nada é igual ao que passou. Quando meu filho mais novo veio ao mundo, eu tinha praticamente a mesma idade de meu pai, quando nasci. Ele, assim como eu, foi o terceiro filho, e igualmente como no meu caso, o avô paterno já havia morrido. Meu avô paterno morreu no mesmo ano em que nasci, enquanto meu pai morrera cinco anos antes dele nascer, mas meu filho teve um breve convívio com o avô materno, o que no meu caso não aconteceu, pois o pai de minha mãe morrera quando ela tinha apenas cinco anos. São as repetições do ciclo da vida, modificadas conforme o desejo de algo ou alguém que rege o universo, delimitando tempo, espaço, ações, reações e outras coisas. Jamais acasos.
Recentemente, lendo um livro muito interessante sobre o caminho de Santiago de Compostela, na Espanha – que pretendo ainda ter tempo para fazer, li uma frase simples, contudo, reveladora que falava sobre a relação entre pais e filhos: “a preocupação do filho em relação ao pai é muito diferente daquela do pai em relação ao filho”, o que é absolutamente uma verdade, porque os mais jovens, embora queiram – em sua maioria, o melhor para seus pais, têm um tempo diferente, visto que o mundo daqueles que vêm depois é outro, muitas vezes antagônico dos que vieram antes.
Essa coisa do tempo é muito interessante. Impressionante pensar que algo tão intangível como ele tenha tanta importância na nossa vida, especialmente depois do advento da internet, do telefone celular e outras coisas tecnológicas, que em vez de nos proporcionarem mais tempo pelas supostas facilidades, atribuíram uma importância tal e carimbaram um “urgente” em coisas tão banais quanto a responder uma simples carta, ou melhor, mensagem eletrônica – ou e-mail, para os iniciados.
É claro que a tecnologia trouxe uma série de praticidades – e não vale falar delas agora, mas ao mesmo tempo – olha ele aí de novo, conferiu pressa ao mundo, parecendo ter encurtado os dias, acelerando o tic-tac do relógio, espremendo as manhãs entre uma madrugada não dormida e uma tarde acelerada, porque o relógio não dá descanso, não para, não tira folga, não falta ao serviço, não fica doente, não sai pra vadiar, não pensa nos segundos seguintes, muito menos nos passados. E me recordo de um provérbio que diz que “o tempo passado não volta”. De fato, não há retorno para o que se fez ou deixou de fazer. Não há como retroceder no tempo como Super Homem, carregando Lois Lane nos braços, fora da órbita terrestre, girando em sentido contrário ao da rotação. Não há “efeito borboleta” que seja capaz de refazer o que se foi, pelo menos exatamente como era antes, nos dando a oportunidade de agir dessa ou daquela maneira, tentando reparar erros ou melhorar as coisas, porque tudo na vida possui uma razão específica, um encadeamento, sem acasos e sem que saibamos ao certo, onde começa ou termina o tal do livre arbítrio. Porém, não se iludam: o acaso não existe.
Por certo, na melhor das hipóteses, esse tal de livre arbítrio, que vem a influenciar – ou ser influenciado, não sei – pelo velho conhecido Tempo – agora como sujeito de todas as coisas, no final das contas me parece um grande engodo, porque não há uma encruzilhada no fim “daquele” caminho, mas no máximo uma bifurcação, levando para a esquerda ou para a direita, desprezando todos os pontos cardeais anotados na bússola, que aliás, esteja aonde estiver, aponta apenas para uma mesma direção – o Norte. Então, cabe ao tal livre arbítrio a escolha de outras direções, porém, contudo, entretanto, todavia, elas não estão em todos os mapas e nem sempre são opções viáveis.
A mim, parece pouco razoável esse negócio de haver apenas duas opções: direita ou esquerda, certo ou errado, bem ou mal, bom ou ruim, sim ou não; mas filosoficamente falando, sem querer me comparar a qualquer pensador de qualquer tempo – eis o mesmo, novamente – possivelmente seria menos razoável ainda, existir mais de duas, eis que uma terceira via trataria de ser não mais que um vazio, pois o que é um “talvez”, se não um imenso vazio, uma grande incerteza, uma inconsistência sob todos os aspectos, visto que ele – o “talvez”, antes de mais nada é uma lacônica e ininteligível negação de qualquer uma das possibilidades, seja o sim ou o não, o certo ou o errado, o belo ou o feio? Essas não são ofertas na prateleira do supermercado, não vêm com marca registrada e nem código de barras. São decisões da vida. E quão difícil e doloroso seria se existissem mais de duas opções, pois se com apenas duas, nos tornamos tão confusos, complexos, dicotômicos, paradoxais, antagônicos, duvidosos, vacilantes, transversais, tergiversantes, imprevisíveis… imagine-se com mais de duas opções!
O que seria do branco – na fotografia, presença total de luz – não fosse o preto – ausência completa de luz, no diafragma de uma câmera? Eis que o equilíbrio feito pela medida certa de abertura e velocidade, calculando o tempo – que surge mais uma vez, agora como contagem de milésimos, décimos, segundos, minutos… se faz preciso para registrar uma fotografia daquele instante de tempo, então com valor de momento. Daí, podemos concluir que o tempo, não mais que ele e apenas ele, é capaz de mover o mundo, fazer as coisas acontecerem e ser um digno e justo aliado, conferindo equilíbrio necessário para todas as coisas, muito embora a balança sempre dê a impressão que colocaram um peso a mais nas suas costas, ou que alguém anda querendo te atribuir uma responsabilidade a mais, te enganar ou tão somente surrupiar alguma coisa, nem que seja tão somente um tempinho a mais ou a menos, dependendo do ponto de vista, ou da situação.
Paro e olho para trás. É possível ver o tempo que passou, encadeando uma história muitas vezes sem nexo, muitas vezes sem grandes diferenças da maioria dos mortais, pois que somos todos semelhantes, porém com algumas diferenças. Assim como o tempo que passou e não volta mais, mas que certamente renovará o ciclo, contando uma história idêntica, às vezes trazendo um dèjá vu, que é aquela sensação de que determinado momento ou situação já foi vista ou vivida. O tempo futuro está lá no horizonte, que se vislumbra muito longe, quase perdendo de vista, pois a caminhada começa agora, nesse instante, no exato momento em que se termina uma coisa e começa outra, num ciclo sempre renovado do qual constam interseções unindo os diversos conjuntos unitários, finitos, infinitos e até os vazios, que formam o grande conjunto universo.
Enquanto isso o tempo, só ele, percorre a sua vida sem que você se dê conta do quão importante ele é para você e você para ele, numa simbiótica relação de cumplicidade, sem valorizar os momentos, por mais ínfimos que sejam, por mais desprezíveis que possam parecer; sem olhar para os lados e indiferente, seguir, ou recuar. Mas o tempo está ali, sem que você perceba, sem fazer ruídos, sem chamar a sua atenção, sem relâmpagos e nem trovões, sem o mar bravio, sem ventos, nem tormentas, mas apenas como uma brisa. Imperceptível e indecifrável tempo.